Elaine Tavares
Jornalista
No Brasil é assim: tudo pode ser adiado,
menos o pagamento das dívidas externa e interna. E isso não é conversa de
"esquerdista”. É coisa firmada na lei. Quem explica é Maria Lucia
Fatorelli, da Auditoria Cidadã da Dívida. Segundo os estudos feitos pelo movimento que luta por uma
auditoria, levantados desde as informações oficiais, só no ano de 2010 o
orçamento nacional foi consumido em 44,93% (635 bilhões de reais) para
pagamento de juros das dívidas. Isso significa que do bolo todo que o governo
tem para gastar quase a metade já nasce morto. Da outra metade que resta
para investimentos, o governo gasta apenas 2,89% com educação e 3,91 com saúde.
Por conta disso, mais de 60% dos brasileiros não tem água tratada nem
saneamento. Isso na sétima economia do mundo.
Diante desses números, Fatorelli mostra
como e por que a dívida acaba consumindo o dinheiro que deveria servir para dar
uma vida melhor à população. Segundo ela, a Constituição, no artigo 166,
estabelece que um deputado só pode pedir aumento no orçamento se indicar de
onde virão os recursos. Mas se o aumento do orçamento incidir sobre o pagamento
do serviço da dívida isso não é necessário. "Isso configura claramente um
privilégio e foi aprovado. Está lá, na Constituição”. Da mesma forma, a Lei de
Diretrizes Orçamentárias define que o orçamento deve ser compatível com o
superávit, assim como a famigerada Lei de Responsabilidade Fiscal obriga os
governantes a cortar gastos no social, mas não os dispensa do pagamento da
dívida. Ou seja, a dívida
sempre em primeiro lugar, pois, se o governante não pagar, vai preso.
"Mas ninguém vai preso se as pessoas morrem nas portas dos hospitais, se
as crianças não têm escola”.
Fatorelli explica que o privilégio para
o pagamento da dívida segue no desenho das metas da inflação, diretriz de
política monetária proposta pelo Fundo Monetário Nacional que é seguida a risca
pelo governo brasileiro. Isso se expressou, por exemplo, na criação da taxa Selic,
a qual boa parte da dívida esteve e está atrelada. Essa taxa sempre é elevada,
cada vez que há um suposto perigo para os investidores. Isso significa que quem
investe nos papéis da dívida nunca vai perder.
Conforme Maria Lúcia o governo trabalha
com inverdades no que diz respeito à política monetária. Um exemplo é
justamente esse de tornar necessário o aumento da taxa Selic para conter a
inflação. "Isso não é verdade. Aumentar a taxa Selic não controla a
inflação nos preços existentes, porque eles decorrem da privatização. A luz
privatizada, a água privatizada, a saúde, etc. O aumento dessa taxa só serve
aos que têm papéis da dívida”. Outra conversa furada é a de que o excesso de
moeda provoque inflação. "A montanha de dólares que entra no país só
acontece porque o próprio governo isenta as empresas multinacionais de imposto.
Não é decorrente da circulação de mercadorias reais. É fruto do movimento
virtual de papéis”.
A entrada de dinheiro se dá da seguinte
forma. Nas operações de mercado aberto (bolsa) que hoje superam meio trilhão de
reais, o Banco Central entrega títulos da dívida para os bancos e fica com os
dólares. Nessas operações, o Banco Central – que em tese é o Estado brasileiro
– só consegue amealhar prejuízos. Em 2009 foram 147 bilhões de prejuízos, em 2010, 50 bilhões e neste
primeiro semestre de 2011 já foram 44 milhões. Por conta disso,
Fatorelli insiste em dizer que os gestores do Estado são responsáveis sim por
essa política que arrocha cada dia mais a vida do povo. Os bancos lucram e o
povo é quem paga a conta.
Outra coisa que muito pouca gente sabe -
porque a mídia não divulga – é que todo o lucro das empresas
estatais é direcionado, por lei, para pagamento da dívida. O mesmo
acontece com os recursos que os estados da federação pagam ao governo central. Toda e qualquer privatização que
acontece carrega o valor da venda para pagamento da dívida, assim como os
recursos que não são utilizados no orçamento também passam para o bolo do
pagamento da dívida.
Maria Lúcia Fatorelli afirma que essa é
uma estratégia de manutenção de poder e acumulação que não mudou sequer um
centímetro com o governo de Lula ou Dilma. Os papeis da dívida rendendo 12% ao mês são o melhor
negócio que alguém pode ter. Tanto que em 2010 houve um acréscimo de
mais 12 bilionários no Brasil e desse número, oito são banqueiros. A lógica do pagamento da dívida
garante risco zero aos investidores, que são os mesmos que financiam as
campanhas eleitorais e patrocinam a mídia. Assim, tudo está ligado.
No meio dessa farra de dinheiro público
indo para bolsos privados, há uma ilusória distribuição da riqueza. O governo
acena com pequenos ganhos aos pobres, como é o caso da bolsa família. Vejam que
esse programa consome
apenas 12 bilhões ao ano, enquanto a dívida leva 635 bilhões. O governo
também coloca como um grande avanço o acesso das classes C e D a produtos
baratos e o acesso a crédito e financiamento. Mas na verdade, o que promove é o
progressivo endividamento dessas pessoas. Por outro lado, o Brasil tem um
modelo tributário que é um dos mais injustos e regressivos. "Quem ganha
até dois salários mínimos tem uma carga tributária bem maior do que os demais
trabalhadores. E os ricos, no geral, são isentos de imposto. Já os empresários
são frequentemente presenteados com deduções generosas, inclusive sobre
despesas fictícias, que nunca foram feitas, enquanto os trabalhadores não podem
deduzir do imposto despesas reais como aluguel, remédios, óculos”.
A ilusão de que as contas estão boas também
se dá na espalhafatosa decisão de pagar adiantado ao FMI, que trouxe dividendos
políticos a Lula, mas acarretou em mais rombos aos cofres públicos, tirando dos
gastos sociais para colocar no bolso dos banqueiros. Foi um resgate antecipado
de títulos da dívida, feito com ágio de até 70%, para que não houvesse qualquer
perda aos investidores.
Agora em 2011 o governo de Dilma
Rousseff iniciou anunciando o corte de 50 bilhões do orçamento, como um
"ajuste necessário”. Faltou dizer, necessário para quem? Para os
especuladores. Há que pagar a dívida. O Brasil consome um bilhão de reais por dia no
pagamento da dívida. Fatorelli procurar dar uma visão concreta do que
seria um bilhão. "Imaginem um apartamento, desses bem finos, que custa um
milhão de reais. Um bilhão equivaleria a cem edifícios de 10 andares, sendo um
apartamento por andar. É isso que sai do nosso país todos os dias”. Não é sem
razão que enquanto os trabalhadores são massacrados e não recebem aumento
salarial, os bancos tenham auferido um lucro de 70 bilhões de reais no ano
passado. É a expressão concreta da regra do mundo capitalista: para que um seja
rico, alguém tem de ser escravo.
Na verdade o processo da dívida externa
e também da dívida interna deveria sofrer uma auditoria e é nessa luta que um
grupo de pessoas anda já há algum tempo. Maria Lúcia Fatorelli foi membro da
comissão que auditou as dívidas do Equador, quando o presidente Rafael Correa
decidiu realmente saber como funcionava o rolo compressor e ilegal da dívida daquele
país. Segundo ela, no Equador, comprovou-se que mais de
70% da dívida era ilegal, fruto de anos e anos de
acordos espúrios e irresponsáveis, muito parecidos com os que foram feito no
Brasil. Correa decidiu não pagar e 95% dos seus credores aceitaram a proposta
sem alarde, pois sabiam que se fossem discutir na justiça internacional
correriam o risco de ter de devolver muitos bilhões.
Hoje, no Brasil, uma auditoria provaria
muitas ilegalidades e até crimes de lesa pátria. Como explicar, por exemplo,
que se pague 12% ao mês aos investidores enquanto o Banco Central brasileiro
aplica suas reservas em bancos estrangeiros, que pagam juros pífios? Como
aceitar que o Banco Central acumule prejuízos enquanto encha as burras dos
investidores dos papéis podres? Por isso que a tão falada crise não pode ser
vista como uma mera crise financeira. Ela é social e
ambiental, pois coloca o salvamento dos bancos acima até da vida do planeta.
Como funciona o esquema dos papeis
podres
Há um mito de que no mundo capitalista
quem manda no movimento das coisas é o mercado. Ele define tudo, preços, valor,
tudo baseado na oferta e procura. Assim, em nome desse mito criou-se a
concepção de desregulamentação do mercado. Ou seja, o estado não pode
interferir nesse movimento. Assim, o mercado, que é bem espertinho, sem um
equivalente concreto de riqueza decidiu criar os famosos papéis podres, ou
ativos tóxicos, ou derivativos. E o que é isso? Bom, para entender há que se
fazer um bom exercício de abstração. Imagine que a pessoa compra uma casa e ela
vale um milhão. Aí a pessoa define que daqui a um ano ela estará valendo dois
milhões, então vai ao mercado de ações e vende dois milhões em papéis. Desses
dois milhões, apenas um tem valor real, está ali, consolidado em uma casa real.
O outro milhão é fictício. Ele só existe no desejo. Imagine que venha um
furacão e danifique a casa. Lá se vai aquele milhão em papel podre, e quem
comprou esses papéis perde tudo que investiu. Foi mais ou menos isso que
aconteceu na crise imobiliária estadunidense.
Agora imagine que os bancos fazem isso
todos os dias. Eles jogam ações no mercado e não precisam provar que essas
ações têm uma correspondência real. Os derivativos são nada mais nada menos do
que apostas. O mercado sabe que é uma aposta, e para não perder ele estabelece
um seguro. Assim, se acontecer dos derivativos virarem pó, eles não perdem
nada. E quem é que paga para os bancos continuarem quebrando a vida real dos
que investem nos papéis podres? Nós. Porque quando os bancos entram em risco de quebra, como aconteceu lá
nos Estados Unidos, o Estado vai e socorre. Para se ter uma ideia, na crise, o
banco central estadunidense chegou a repassar 16 trilhões de dólares para
salvar os bancos da bancarrota. O que mostra que é uma falácia esse
negócio de "mercado livre”. O mercado só é livre quando há lucros, quando
há prejuízos quem paga a conta é povo.
Então, quando aparece na televisão a crise na Grécia, os protestos na
Espanha, na Itália, Irlanda, França e mesmo no Brasil, já se pode saber que o
que está acontecendo é exatamente isso. Os países estão se endividando para
salvar investidores e pagar as dívidas que contraem nessa roda viva de papel
podre. Assim, define Fatorelli, a crise no setor financeiro dos países é
falsamente transformada em crise da dívida. E os países então colocam sob os
ombros do povo o pagamento de suas "apostas” mal feitas ou ilegais.
No Brasil a dívida externa chega a 350 bilhões e a dívida interna aos 2,5
trilhões. A dívida
bruta consome 70% do PIB e o governo paga os maiores juros do mundo. É
uma festa interminável para os investidores mundiais, sem risco algum. O
governo de FHC consumiu, só em juros, dois trilhões de reais, o governo Lula,
4,7 trilhões. Tudo o que se diz na televisão sobre os problemas que o estado
tem com o orçamento é mentira. Há dinheiro suficiente, mas ele é usado para
enriquecer, sem riscos, os investidores. Não bastasse isso, ao longo dos anos,
as taxas de juros, que garantem os maiores lucros do mundo, são definidas por
"especialistas”. Desse grupo que orienta os juros 51% são representantes
dos bancos e 35% representam o subgrupo de gestão de ativos. Ou seja, eles
atuam em interesse próprio. Só isso já bastaria para se dar início a uma séria
investigação sobre o tema da dívida. Porque da forma como tudo acontece, assoma
claramente a intenção do prejuízo à nação. Vem daí a proposta de uma auditoria,
aos moldes da que fez o Equador. Mas, para isso precisaria haver uma decisão política. Por que será que
ela não acontece? É hora de a gente pensar...
Recebido por e-mail, já grifado.
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